Dilemas em torno da média
Divagações acerca da Teoria da Perspectiva

Lauro Marques Vicari,
membro da Liga Acadêmica Newton Paulo Bueno
e acadêmico da Universidade Federal de Viçosa

                – Professor, por que o senhor me tirou cinco pontos nesta questão? – pergunta o aluno.
            – Não fui eu que tirei, foi você que perdeu. – retruca o professor.

            Quem já foi estudante, certamente se deparou ou até mesmo protagonizou um diálogo como este. Uma nota ruim, a eminente ameaça ao avanço dos anos letivos e a redução das sonhadas férias, se apresentam constantemente como motivos para o professor ser enxergado como uma figura perversa e sem coração. Diante disso, o pobre coitado, sempre munido de saídas irrefutáveis às críticas de sua plateia na esperança de reduzir sua imagem de vilão, costuma valer-se do argumento de que os alunos começam o período com a nota total e, por conta própria, vão perdendo os pontos ao longo das avaliações. De fato, nada mais reconstrutivo para estudantes preguiçosos e desinteressados, do que a responsabilidade inspirada por esta máxima. E tanto menos desgastante para o professor é utilizá-la como alavanca para apaziguar os ânimos da turma e mostrar que o único jeito é realmente meter a cara nos livros. Assim, na ânsia de se livrar logo das torturas escolares, a sala coloca-se rapidamente a estudar sem nem mesmo questionar a validade deste fundamento. Será que de fato começa-se com o total e se vai perdendo? Ou parte-se do zero até atingir o valor necessário? Estas perguntas, dada à evidência dos fatos, não requerem objetivamente uma resposta, mas podem converter-se antes de tudo em um problema de comportamento. Eis uma possibilidade de investigação.
            Um dos principais achados teóricos dos estudiosos da Economia Comportamental, diz respeito à forma como o ser humano reage à capacidade de satisfação de sua riqueza. Amos Tversky e Daniel Kahneman empreenderam interessante argumentação para mostrar que as pessoas fazem julgamentos com base em perdas e ganhos, e não a partir de seus estados de riqueza. A teoria da utilidade, combatida pelos autores, postula, por exemplo, que a diferença entre a satisfação gerada pelo incremento de R$ 500 quando se tem R$ 1000 possui o mesmo valor subjetivo que a desutilidade motivada pela perda da mesma quantia quando se possui R$ 1500. Em suma, esta ideia afirma que tanto as diferenças positivas quanto as negativas de um similar valor na renda de uma pessoa, tendem a produzir uma resposta inversa, porém de mesma magnitude em termos de sua satisfação. Por utilidade ou satisfação é possível compreender a chance de se adquirir produtos e serviços no mercado, ou seja, uma medida do que se pode comprar quando algum recurso é obtido, ou das restrições que se impõem quando uma quantia de dinheiro é perdida. Assim, observando um impasse nesta questão, Tversky e Kahneman contestando o idêntico tratamento do comportamento humano frente a perdas e ganhos, formalizado pela teoria da utilidade, elaboraram um exercício de elucidação. Com duas simples perguntas, o leitor pode entender um pouco mais de sua natureza:
                     
Caso 1: O que você prefere?
Conseguir R$ 900 com certeza ou 90% de chance de conseguir R$ 1000.

Caso 2: O que você prefere?
Perder R$ 900 com certeza ou 90% de chance de perder R$ 1000.


            Enquanto na primeira situação se é levado a optar entre um ganho certo e uma aposta arriscada, na segunda, é preciso escolher entre uma perda garantida e outra de caráter incerto. Neste panorama, as pessoas em sua grande maioria, tendem a preferir a certeza quando o assunto é o ganho e o risco quando se manifesta a perda. Nas palavras de Kahneman, “você simplesmente gosta de ganhar e não gosta de perder – e quase certamente não gosta de perder mais do que gosta de ganhar”. Em outro estudo, os autores propuseram semelhante conjunto de opções, mas conferiram ao agente, dois ganhos prévios (um maior e outro menor), de modo a testar o pressuposto do estado de riqueza enfatizado pela teoria da utilidade. O resultado obtido confirmou a hipótese de que o comportamento humano frente ao risco não possui justa relação com o montante que o ganho ou a perda altera a riqueza, mas sim com o próprio valor psicológico oriundo dos atos de ganhar e perder. Com estas conclusões, Kahneman e Tversky enunciaram a Teoria da Perspectiva englobando aspectos psicológicos muito mais realistas do homem e desferindo profundo golpe ao arcabouço vigente. No cerne destas ideias, está a formalização de que as pessoas adotam escolhas com base em pontos de referência, relativos não só ao estado de riqueza, mas, sobretudo, à avaliação de perdas e ganhos. Estas são as ferramentas para desenvolver o problema sobre o qual se quer debruçar.
            Portanto, qual pode ser a relação entre a Teoria da Perspectiva e a forma como o professor encara as notas de seus alunos? O princípio neste caso, diz respeito ao comportamento estudantil frente às perdas e ganhos de nota em relação a dois possíveis pontos de partida e um conhecido ponto de referência. Pelos primeiros toma-se a nota 0, a partir da qual se contabilizam os ganhos e a nota 100 pela qual quitam-se as perdas; já pelo último, entende-se o conceito suficiente, conhecido como média, que será aqui designado pelo valor 60. Assim, se um professor adotar o tradicional sistema escolar em que se assoma a nota, o aluno que quiser passar de ano deverá se esforçar para ganhar no mínimo os 60 pontos. Enquanto isso, se o professor resolver inovar e levar a cabo seu argumento, debitando as notas a partir dos 100, o mesmo intento só será alcançado se o aluno perder no máximo 40 pontos. Com esta clarividente e já consumada conclusão pretende-se criar as bases para propor uma situação teórica na qual os aspectos psicológicos possam ser explorados no objetivo de gerar melhores resultados escolares por parte dos estudantes. Mas antes, faz-se necessário explorar o presente arcabouço teórico e averiguar como ele se comporta com o problema em questão.
            A Teoria da Perspectiva tal como desenhada por Kahneman e Tversky obedece a três princípios cognitivos que cerceiam os campos da emoção, juízo e percepção. A seguir eles são desenvolvidos com uma possível aplicação ao dilema em torno da média:
·         Ponto de referência: denominado também de “nível de adaptação”, o ponto de referência pode ser observado como um marco neutro capaz de denotar tanto a situação atual na qual um agente se encontra como a meta por ele esperada. Ao tomar uma decisão, uma pessoa avalia os resultados com base neste ponto: aqueles melhores representam ganhos; os piores, perdas. No caso das notas escolares, o ponto de referência – como já explicitado – é a média 60 que pode ser vista como perda partindo dos 100 ou como ganho derivada do zero.
·         Princípio da sensibilidade decrescente: este pode ser observado pelo valor subjetivo advindo de incrementos ou reduções em um determinado aspecto analisado. Por exemplo, obter R$ 100 quando se tem a riqueza de R$ 900 representa um “retorno psicológico” em termos de satisfação menor do que o mesmo ganho se as disponibilidades fossem R$ 200. Da mesma forma, aplicado ao presente caso, a diferença subjetiva do ganho de 10 pontos para um aluno que possui 80 tende a ser menor do que se sua nota estivesse acumulada em 40. Por não haver alcançado a média (ponto de referência), o aluno acaba valorizando mais os pontos.  
·         Aversão à perda: o relutante comportamento humano diante da ameaça à perda pode ser visto como o norte da Teoria da Perspectiva. Comparado às possibilidades de ganho, o medo de perder apresenta maior impacto, o que nesta aplicação permite levar os alunos a superestimar suas notas á partir dos 100 em maior grau do que quando estas se iniciam do 0. É este pilar da teoria que enuncia o seu principal lema: “a dor da perda é maior do que o prazer do ganho”.

Baseados nestes pressupostos, os autores cunharam suas contribuições em um gráfico que segundo Kahneman pode ser considerado a bandeira da Teoria da Perspectiva. Este, ligeiramente modificado* nesta apresentação, para fins de se adaptar ao problema em estudo retrata no eixo vertical, o valor psicológico que a nota possui para o aluno e no eixo horizontal, o dilema em torno da média. À direita (ganhos), o comportamento do aluno é retratado quando sua nota é contabilizada iniciando do 0 e à esquerda (perdas), quando esta é subtraída a partir dos 100. Na origem tem-se, portanto, uma representação dos dois pontos iniciais (0 e 100) de onde são tomadas as diferenças até a média. Já o ponto de referência – a média 60 – está presente em ambas as perspectivas: no lado direito o ganho de 60 pontos, no esquerdo, a perda de 40. A curva, por sua vez, materializa o princípio da sensibilidade decrescente. Infere-se neste caso, que a partir do momento em que o estudante atinge o conceito suficiente para avançar o ano letivo, a utilidade da nota tende a cair o que é demonstrado no gráfico pela redução do acréscimo de seu valor psicológico após os 60, de onde a curva passa a crescer a taxas decrescentes. Na situação contrária, do intervalo pelo qual o aluno parte da nota 100 e sofre com a queda de 40 pontos, a curva aprofunda o valor psicológico da perda e a partir daí tende a se normalizar. Apesar de demandar experimentos práticos, uma sugestão para este movimento pode se dar pela construção do cenário no qual um aluno que perde mais de 40, convencido de que não será possível recuperar, entrega literalmente os pontos e passa a sofrer menos com a continuidade das perdas. O círculo analítico fecha-se, portanto, pela observação do princípio da aversão à perda: na perspectiva do 0, por exemplo, o ganho de 40 pontos trás um valor psicológico de magnitude inferior que o ganho do mesmo montante na perspectiva inversa. Esta condição, retratada pelo gráfico, confirma também para este contexto, a necessidade de substituir o referencial da teoria da utilidade pelo da Teoria da Perspectiva.
Desta forma, as conclusões que se levantam não poderiam ser mais claras. Enquanto o questionamento acerca da veracidade de que os alunos começam o ano com 100 pontos e vão perdendo ao longo do tempo não possui sentindo real, sobre o olhar comportamental, esta questão pode se reverter em um avanço prático. Se é verdade que a dor da perda é maior que o prazer do ganho, então a tendência aos alunos se esforçarem mais para evitar as perdas neste novo sistema de notas é teoricamente sustentável. Ao perceber que o caminho percorrido entre a nota 100 e a média 60 é menor do que o convencional percurso que se inicia no 0, a classe, relutante à perda, pode ser levada a se preparar melhor para as avaliações, demonstrando consequentemente um maior aprendizado. Esta possibilidade corrobora, em algum sentido, com a interface entre a Economia Comportamental e as Políticas Públicas por constituir um mecanismo de incentivo sem custos adicionais e capazes de promover mudanças pela simples inversão de um contexto. Este argumento está, no entanto, longe de defender que um experimento como este possa resolver as mazelas que afligem a educação, mas por outro lado, apresenta uma via de interferência no componente motivacional de cada aluno, variável na qual nem sempre montanhas de investimento podem mexer. Por fim, é preciso destacar que esta aplicação não passou por nenhum crivo científico a nível experimental, não sendo possível, até o momento, testar sua validade. Caso esta não se verifique, remanesce, portanto, uma forma de abstração, apta a explicar teoricamente um conceito da Economia Comportamental.

* No gráfico original elaborado por Kahneman, a origem é tomada como um ponto de referência neutro e o eixo horizontal marca o montante de uma variável. Neste exercício, para ser possível acomodar os dois pontos iniciais (0 e 100) e o ponto de referência (60) no mesmo gráfico, foi necessário inverter suas posições e contabilizar a variável nota em termos da diferenças e não do montante.

Referências Bibliográficas:


KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar: duas formas de pensar. Editora Objetiva, 2012.   

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