A Constituição como compromisso prévio


Davi Augusto Santana de Lelis [i]
Membro da LANP





As ciências sociais aplicadas se rendem cada vez mais à perspectiva de que o ser humano não é plenamente racional. Nesta perspectiva, estudos de como a sociedade se organiza e age devem levar em consideração que o comportamento humano está sujeito às influencias cognitivas, sociais, ideológicas e emocionais não previstos nas teorias tradicionais.
            Na interação entre Estado e Sociedade – em especial no desenho de políticas públicas -, o reconhecimento de que o comportamento humano sofre influências externas, levou a economia comportamental à ideia de nudge (empurrão): abordagem que preserva a liberdade de escolha, mas que influencia a tomada de decisão do indivíduo.
Sunstein[ii] exemplifica as aplicações de nudge: (1) regra default, como a inscrição automática em programas de previdência; (2) simplificação de formulários; (3) uso de normas sociais para influenciar comportamentos; (4) aumento da facilidade e conveniência da escolha; (5) divulgação de informações que embasam a decisão; (6) divulgação de alertas de risco, a exemplo do que ocorre nas embalagens de cigarro; (7) compromisso prévio de realização de uma determinada conduta; (8) lembretes de que determinada ação ainda é possível de ser realizada, como a vacinação; (9) evocação de intenções, por exemplo: “você pretende se vacinar?”; e (10) apresentação de informações sobre escolhas passadas. Dentre estes exemplos uma questão que importa tanto à economia comportamental quanto ao direito: a constituição pode ser entendida como um nudge de compromisso prévio para agentes públicos?
            Correndo o risco da simplificação e analisando apenas a relação entre as normas constitucionais e a tomada de decisão dos agentes públicos, pode-se afirmar que a constituição estabelece: (a) estrutura para a máquina estatal contrabalancear a paixão ideológica; e (b) dificuldade elevada (em comparação com outras formas legislativas) na modificação do texto constitucional[iii] de forma a manter a estrutura de compromisso prévio.
            (a) As regras constitucionais, previstas em momento prévio, se prestam a evitar que, durante momentos de crise a tomada de decisão dos agentes públicos seja realizada com forte influência de paixão ideológica e/ou de inconsistência temporal. Quanto a paixão, pode-se dizer que a constituição conta com uma ideologia constitucionalmente adotada[iv] capaz de ponderar, entre as diversas justificativas, a razão constitucional a ser acolhida[v]. Assim, as regras (compromisso prévio constitucional) evitariam que os agentes públicos tomassem decisões equivocadas no futuro e garantiriam uma previsibilidade econômica, política e social sem se valer apenas das decisões imediatistas.
            (b) A mudança das normas constitucionais é dificultada pela necessidade de aprovação de emenda constitucionais que, apesar de terem a condição de suprimir, alterar ou incluir normas constitucionais não podem, em alguns casos, promover qualquer alteração. Para que a Proposta de Emenda Constitucional seja aprovada é preciso aprovação de 3/5 da totalidade dos membros em dois turnos de votação nas duas casas do Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado Federal). Assim, para a aprovação de qualquer modificação na constituição são necessários os votos favoráveis de 308 deputados e 49 senadores. Em comparação, a lei ordinária precisa de maioria simples do número de presentes e a lei complementar precisa de maioria absoluta (41 votos favoráveis de 81 senadores e 257 votos favoráveis de 513 deputados). Apesar da possibilidade de modificação constitucional, há um compromisso prévio mais forte presente no texto constitucional: determinados artigos não podem sofrer qualquer alteração, são as cláusulas pétreas, previstas no artigo 60§4º da constituição: forma federativa de Estado; voto direto, secreto, universal e periódico; separação dos poderes e; os direitos e garantias individuais[vi].
            Assim, embora a constituição possa ser entendida como um compromisso prévio, a recente crise política e as consequentes violações da constituição indicam que será necessário estabelecer nudges mais eficientes para que o comportamento humano do agente público esteja menos influenciado por questões cognitivas, sociais, ideológicas, econômicas, políticas e emocionais e mais de acordo com o pacto constitucional previamente firmado.




[i] Professor de Direito da Universidade Federal de Viçosa-MG; doutorando em direito público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; bolsista CAPES. E-mail: davilelis@ufv.br
[ii] SUNSTEIN, Cass R. Nudging: um guia bem breve; ÁVILA, Flávia; BIANCHI, Ana Maria. Guia de Economia Comportamental e experimental. São Paulo: economiacomportamental.org. 2015.
[iii] ELSTER, Jon. Ulisses Liberto: estudos sobre racionalidade, pré-compromisso e restrições. São Paulo: UNESP. 2009, p.154.
[iv] SOUZA, Washington Peluso Albino de. Teoria da Constituição Econômica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.
[v] LELIS, Davi Augusto Santana de; COSTA, Lorena Vieira; Julgamento moral, economia e políticas públicas. Revista Jurídica da Presidência. Brasília, v.18 n.114. Fev/Maio 2016.
[vi] O Supremo Tribunal Federal considera que o artigo 16 (anterioridade eleitoral) é também uma cláusula pétrea.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Rapport

Economia Comportamental: O Nudge

Heurística da disponibilidade: a mídia e a distribuição do pânico