Ensaio sobre a dívida





Ítalo N Soares, estudante de Engenharia Elétrica
membro da Liga Acadêmica Newton Paulo Bueno


Thorstein Veblen foi um economista americano da virada do século XIX para o XX, que deixou como legado a importante expressão “consumo conspícuo”. Em seu livro mais famoso, A teoria da classe ociosa, ele sustentou que o consumo moderno estava se tornando um exercício vazio, no qual tudo com que as pessoas se importavam era ter o mesmo padrão de vida dos vizinhos. Os consumidores simplesmente estavam perdidos, argumentava Veblen.
Embora as idéias de Veblen sobre o hábito de consumo conspícuo sejam bastante atuais, cabe notar que a obra do americano foi lançada em 1899, de forma que podemos tratar Veblen como um profeta de nossos tempos. Bem, na realidade, nem tanto. O nível de consumo conspícuo da sociedade atual atingiu níveis que Veblen sequer imaginaria possível. Vivemos agora, no termo preciso do filósofo Gilles Lipovestski, uma “era do hiperconsumo”.
Vemos diariamente nos meios de comunicação como o consumo conspícuo é celebrado. O ímpeto pelo consumo efêmero apresenta uma imediata face elegante, feliz e leve; no entanto, é inegável que ele apresenta um outro lado, triste e cruel, e ainda pouco discutido: O endividamento. A sociedade do hiperconsumo também é a sociedade da hiperdívida. O moderno consumidor colecionador de emoções é o mesmo endividado colecionador de contas a pagar.
O Brasil não se difere da tendência mundial. Segundo dados de relatório recente do Ibope, 60% dos brasileiros têm dificuldade de pagar suas contas ou compras feitas a crédito. E, ao contrário do que o senso comum apontaria, o endividamento não atinge apenas as famílias com rendas modestas. O estudo mostra que 52% das famílias com renda maior que 5 salários mínimos – vale notar, algo próximo de 4500 reais, quase o dobro da renda média brasileira – apresentam dificuldades de honrar suas dívidas.
O problema do endividamento alto das famílias brasileiras é geralmente discutido com as ferramentas de análise tradicionais, que passam sobretudo pela sociologia e pela economia clássica. Argumentos dessa natureza sempre entram no debate: Nossa cultura que é historicamente avessa à poupança, nossa flagrante desigualdade de renda, os problemas institucionais, nosso sistema bancário fechado e oligopolizado, que provoca uma prática de juros elevados, e porque não dizer, extorsivos. No entanto, esses clássicos modelos de abordagem, apesar de interessantes e fundamentais, não abarcam a complexidade da natureza humana. É preciso um novo aporte teórico. É nesse ponto que as reflexões da economia comportamental são cruciais.
O pesquisador Jonah Lehrer, em seu interessante livro O Momento Decisivo, expõe uma experiência realizada em uma universidade americana que demonstra com acurácia o que realmente está em jogo:
Drazen Prelec e Duncan Simester, dois professores de administração do MIT, organizaram um experimento de duplo cego, para uma compra de bilhetes para um jogo do Boston Celtics. Metade dos participantes do leilão foram informados que deveriam pagar com dinheiro; para a outra metade foi dito que eles tinham de pagar com cartão de crédito. Prelec e Simester então fizeram a média dos lances para os dois diferentes grupos. Notaram que o lance médio do cartão de crédito era duas vezes maior à oferta média com dinheiro vivo. Quando as pessoas usaram seus Visas e MasterCards, suas propostas eram muito mais imprudentes.
Eles já não sentiam a necessidade de conter os seus gastos, e assim eles passaram muito além de seus limites.

Segundo Lehrer, a diferença marcante no resultado do teste é devido a uma característica própria do cérebro humano. O ato de comprar com cartão de crédito transforma a transferência de dinheiro em uma ação abstrata, causando assim menor atividade na ínsula, pequena glândula localizada em região profunda do cérebro responsável pelas nossas sensações negativas. Em outras palavras, sem a visão do dinheiro saindo da carteira e caindo no balcão, perdemos a sensação cortante de sermos subtraídos no ato da compra. O antropólogo Marcel Mauss, em seu clássico Ensaio Sobre a Dádiva, demonstra que desde os primórdios da humanidade, o ato da troca de recursos no comércio carrega consigo um simbolismo que antecede a lógica egoísta do Homo Economicus. Mauss sustenta que o jogo de doações mútuas no mercado amarra consumidor-vendedor com um fio de confiança e hospitalidade; a assistência mútua nasce das trocas simbólicas entre dádivas(presentes). Traçando um diálogo entre Mauss e o episódio citado por Lehrer, notamos então que com o cartão de créditos em mãos, desaparece a dádiva e surge a dívida.
Ainda segundo os dados da pesquisa do Ibope, 64% dos brasileiros temem perder o padrão de vida que tem hoje. No total, cerca de 83% dos brasileiros temem em alguma medida terem no futuro saúde financeira pior que a atual. Se Amos Tverski está correto ao demonstrar que a dor da perda é maior que o prazer do ganho, concluímos logo que a sociedade do hiper-consumo é também a sociedade da ansiedade incessante.
Os proponentes de políticas públicas de nosso tempo devem estabelecer um diálogos entre as teorias consolidadas e as contribuições recentes de áreas pouco correlatas com as ciências humanas, como a neuroanatomia e a psicologia cognitiva. Os problemas atuais são complexos e sendo assim demandam abordagens sofisticadas; políticas públicas que lidem antes com a condição humana real ao invés de abstrações e simplificações. Se desejamos moldar instituições que de fato protejam os indivíduos e melhores de fato a vida das pessoas – criando aquilo que o teólogo K.E. Logstrup chamou de “economia moral” – precisamos lidar com o homem real, em toda sua natureza sutil. Devemos optar não por uma proteção que imobiliza a liberdade individual e corrói o caráter, mas, sobretudo, numa rede de segurança que reconheça as fragilidades humanas.

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